Pode-se abrir, sem autorização judicial, encomenda postada nos Correios para fins de averiguar possível prática de crime?
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Resposta rápida
Entendemos ser possível a abertura de
encomendas enviadas pelos Correios, ou mesmo remetidas através de
transportadoras privadas, seja por funcionários dos Correios (no atinente às
postagens) ou por autoridades públicas (nos dois casos), nos limites de suas
atribuições, quando houver fundados indícios da prática de infração penal e
mediante formalização da providência. Essa medida independe de autorização
judicial ou mesmo da presença do remetente ou do destinatário no ato da
abertura.
2
Resposta detalhada
A questão em referência tem como marco jurídico
mais recente a decisão proferida pelo Plenário do STF, em 30/11/2023,
que fixou a seguinte tese (RE 1116949 ED/PR, Rel. Min. Edson Fachin, pub. em
24/05/2024)[1]:
[...] Embargos de declaração conhecidos
e parcialmente providos para explicitar a tese de repercussão geral relativa ao
tema 1.041 nos seguintes termos:
"(1) Sem autorização judicial ou
fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta,
telegrama, pacote ou meio análogo, salvo se ocorrida em estabelecimento
penitenciário, quando houver fundados indícios da prática de atividades
ilícitas;
(2) Em relação a abertura de encomenda
postada nos Correios, a prova obtida somente será lícita quando houver fundados
indícios da prática de atividade ilícita, formalizando-se as providências
adotadas para fins de controle administrativo ou judicial".
A leitura do interior teor do Acórdão
correspondente[2]
traz a compreensão necessária quanto a evolução do entendimento do STF sobre o
tema, pois a tese anterior fixada no mesmo Processo, em 18/08/2020[3], havia sido a seguinte (RE
1116949 PR, pub. em 02/10/2020):
[...]
1. Além da reserva de jurisdição, é
possível ao legislador definir as hipóteses fáticas em que a atuação das
autoridades públicas não seriam equiparáveis à violação do sigilo a fim de
assegurar o funcionamento regular dos correios.
2. Tese fixada: “sem autorização
judicial ou fora das hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante
abertura de carta, telegrama, pacote ou meio análogo.” 3. Recurso
extraordinário julgado procedente.
Quanto ao item 1 acima transcrito (“[...] é
possível ao legislador definir as hipóteses fáticas em que a atuação das
autoridades públicas não seriam equiparáveis à violação do sigilo a fim de
assegurar o funcionamento regular dos correios”), está se referindo a
ementa do Acórdão à possibilidade prevista de abertura das encomendas sem
necessidade de autorização judicial, com base na seguinte previsão contida
na Lei nº 6.538, de 22 de junho de 1978:
Art. 10 - Não constitui violação de
sigilo da correspondência postal a abertura de carta:
I - endereçada a homônimo, no mesmo
endereço;
II - que apresente indícios de conter
objeto sujeito a pagamento de tributos;
III - que apresente indícios de conter
valor não declarado, objeto ou substância de expedição, uso ou entrega
proibidos;
IV - que deva ser inutilizada, na forma
prevista em regulamento, em virtude de impossibilidade de sua entrega e
restituição.
Parágrafo único - Nos casos dos incisos
II e III a abertura será feita obrigatoriamente na presença do remetente ou do
destinatário.
Então, essa hipótese é de abertura de
encomenda suspeita na presença do remetente ou do destinatário.
Considerando o Min. Marco Aurélio, Relator originário do caso, entender que nem
nesse caso seria lícita a abertura sem autorização judicial, figurou como
Relator no Acórdão correspondente o Min. Edson Fachin, cuja posição prevaleceu
na ocasião, por maioria.
Desse modo, abriu-se espaço ao entendimento,
naquela ocasião, de não ser possível a abertura de encomendas sob a
guarda dos Correios, em não havendo autorização judicial, sem a presença
do remetente ou do destinatário, mesmo havendo suspeitas da prática
de crime, visto a tese fixada considerar a regra da impossibilidade da
violação desses volumes sem autorização judicial, sendo ela flexibilizada
apenas no caso de previsão legal, como ocorre na Lei nº 6.538/1978.
A Procuradoria-Geral da República apresentou
embargos de declaração em face da decisão antes detalhada. Nesse cenário que
sobreveio o julgamento de 2023, com alteração na tese fixada, desta feita por
unanimidade.
O novo julgado não alterou a premissa
básica fixada em 2020, qual seja: “Sem autorização judicial ou fora das
hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta,
telegrama, pacote ou meio análogo”. Ele apenas esclareceu quanto às
exceções a essa regra, e admitiu expressamente outras hipóteses de
abertura legal de encomendas sem autorização judicial, afora aquela prevista na
Lei nº 6.538/1978 (art. 10) para a abertura de cartas.
O STF admitiu expressamente, portanto, mais
duas hipóteses legítimas de abertura de volumes sem autorização judicial, em
ambas exigindo-se a presença de fundados indícios da prática de atividades
ilícitas: a) carta, telegrama, pacote ou meio análogo, quando a abertura
ocorrer em estabelecimento penitenciário; e b) encomenda postada nos Correios.
Ficou claro, portanto, haver a possibilidade
de abertura, sem autorização judicial e mesmo sem a presença do remetente
ou do destinatário, de encomendas postadas nos Correios, caso estejam presentes
os fundados indícios antes mencionados e também exigindo-se a formalização do
ato para fins de controle administrativo ou judicial.
Mesmo diante dessa conclusão, pode surgir,
ainda, a seguinte dúvida: Somente funcionário dos Correios pode abrir, sem
autorização judicial, encomenda postada ou prestes a ser postada, no caso de
indícios de ilicitude?
Essa questão específica não foi debatida de
forma direta no julgado comentado neste escrito, porém o contexto da causa
então apreciada e também alguns aspectos evidenciados no Processo demonstram a
sinalização de que outras autoridades públicas, no exercício de suas
atribuições, podem efetuar a abertura das encomendas diante da constatação de indícios
da prática de crime.
O caso concreto no qual se decidiu dar
repercussão geral ao julgado foi justamente atinente à abertura de uma
encomenda entregue por um militar para o serviço de protocolo de órgão público
para em momento posterior ser encaminhado aos Correios. Decidiu-se pela
averiguação do pacote ainda no órgão público. Não se questionou essa
circunstância no julgamento, mas sim o fato de ser possível ou não abrir, sem
autorização judicial, volumes despachados.
Pensamos, portanto, ser perfeitamente possível,
diante de fundados indícios de crime, autoridades públicas efetuarem, dentro de
suas respectivas atribuições, a abertura de encomendas despachadas, seja pelos
Correios ou através de transportadoras privadas, para checarem o seu conteúdo,
realizando a pertinente formalização do ato.
Defender em sentido contrário seria totalmente
ilógico. Imagine-se noticiante comparecer em uma unidade policial,
identificar-se e fornecer provas do transporte em andamento de um dispositivo
explosivo pelos Correios com risco iminente de detonação. Certamente não há de
se esperar autorização judicial ou mesmo a presença de funcionário da empresa
pública (imagine-se estar o pacote em viagem por transportador terceirizado)
para efetuar a imediata abertura da encomenda.
Então, entendemos não dizer respeito o julgado
comentado somente à abertura de encomendas por parte de funcionários dos
Correios, mas também de outras autoridades públicas, dentro de suas
atribuições. Aliás, a tese fixada em
2020, não repudiada no julgado de 2023, mas apenas complementada, fala
justamente na atuação de autoridades públicas.
Ademais, o próprio CPP determina em seu art.
6º, que a autoridade policial, logo após ter conhecimento da prática de
infração penal, deverá adotar as seguintes providências, dentre outras: “[...]
II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos
peritos criminais; III – colher todas as provas que servirem
para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; [...]”.
Assim, havendo acionamento da autoridade
policial quanto ao transporte de material ilícito, seja pelos Correios ou por
transportadora privada, e sendo detectados fundados indícios da prática de
crime, cabe a abertura imediata, independentemente de autorização judicial, até
mesmo por conta dos riscos inerentes à não destinação adequada imediata do
objeto (como é o caso de explosivos, por exemplo).
Outra questão potencialmente relevante para
casos concretos foi a discussão travada no STF, no julgado ora comentado,
quanto ao possível tratamento diferenciado a correspondência e encomenda.
O Relator (Min. Fachin) defendeu em seu voto
originário não haver diferença de tratamento, para efeitos de proteção do
sigilo, entre encomenda e correspondência/carta, conforme segue:
Antes, tal como consta do acórdão, a
solução limitou-se a reconhecer que a abertura do “pacote” (quer seja
“encomenda”, quer “correspondência”) sem a observância dos parâmetros legais
constantes da Lei 6.538, de 22 de junho de 1978, torna inadmissível a prova por
meio dela obtida. Noutras palavras, para a definição do alcance do sigilo de
correspondência, a proteção constitucional, concretizada por meio da legislação
postal, não distingue o objeto da correspondência entre “encomenda” ou “carta”.
Ocorre, contudo, de ter o mesmo Relator mudado parcialmente
seu voto originário, após as considerações apresentadas pelo Min. Alexandre de
Moraes e contribuição da Min. Cármen Lúcia[4]. E a posição do Min.
Alexandre foi justamente de diferenciação, para efeitos de proteção do sigilo,
entre correspondência e encomenda, in verbis:
Do arcabouço legal e constitucional
acima transcrito, pode-se inferir que a Constituição conferiu sigilo à
correspondência, compreendida como toda comunicação de pessoa a pessoa, por
meio de carta, através da via postal, ou por telegrama.
Não há, portanto, semelhança. O
tratamento não é idêntico em relação a cartas e encomendas. Exatamente por
isso, há todo um sistema de fiscalização nos Correios, em virtude de os
Correios, não raras vezes, durante parte do trajeto, passarem, de um lado para
o outro, essa encomenda, mas acabam também repartindo a entrega com um serviço
privado.
E não há, na legislação que regulamenta
a matéria, qualquer dispositivo que impeça a abertura de pacotes/encomendas por
funcionários, quando estes observarem, mediante práticas rotineiras, a
possibilidade de que o conteúdo da encomenda seja produto ou substância
ilícita.
[...]
Por isso, Presidente, parece-me que
essas questões específicas não retiram, de forma alguma, a importância do que
foi definido pelo Supremo Tribunal Federal, naquele momento, no julgamento, que
foi a seguinte tese:
Sem autorização judicial ou fora das
hipóteses legais, é ilícita a prova obtida mediante abertura de carta,
telegrama, pacote ou meio análogo.
Essa foi a tese.
Esse item, que era o item único,
proponho que se transforme no item I da tese. Continuaria idêntico, nesse
primeiro momento: sem autorização judicial ou fora das hipóteses legais, é
ilícita a prova obtida mediante a abertura de carta, telegrama, pacote ou meio
análogo.
E, aqui, vem a complementação:
Salvo se ocorrida em estabelecimento
penitenciário, quando houver fundados indícios da prática de atividades
ilícitas.
Com isso, resolveríamos a especificidade
em relação ao sistema penitenciário.
Proponho um segundo item, para resolver
o problema dos Correios.
Em relação à abertura de encomenda
postada nos Correios, a prova obtida somente será lícita quando houver fundados
indícios da prática de atividades ilícitas.
Essas são duas complementações, que
destacam duas questões específicas, que proponho ao Plenário, Presidente.
Nesse passo, com a mudança parcial do voto do
Relator, acatando as sugestões do Min. Alexandre, entende-se ter prevalecido a
posição quanto à diferenciação entre correspondência e encomenda. Tanto que o
STF fez questão de consignar uma previsão quanto à possibilidade de abertura em
estabelecimento penitenciário e outra diferente (mais restritiva) quanto aos
Correios.
A bem da verdade, os casos de indícios
suficientes para abertura de volumes transportados pelos Correios dificilmente
recairão sobre alguma correspondência, mas não se descarta essa possibilidade.
Por exemplo: Escrito colocado em envelope pequeno contendo substância altamente
tóxica em pouca quantidade (dissimulada), enviado para alguma pessoa com o
objetivo de prejudicar a sua saúde, podendo também potencialmente contaminar
quem o manuseie. Em casos da espécie poder-se-ia argumentar não ser o volume em
questão uma encomenda (e sim correspondência), de modo a não ser possível sua
abertura sem autorização judicial ou sem a presença do remetente ou do
destinatário (art. 10 da Lei nº 6.538/1978).
Ocorre, contudo, haver no caso acima o transporte
de substância cujo transporte daquele modo é proibido (art. 13 da Lei nº 6.538/1978),
descaracterizando a natureza da correspondência. Então, não se trata de
abertura para acessar o conteúdo da comunicação, mas sim para acessar a substância
proibida e interceptá-la, impedindo causação de danos. Assim, entendemos ser
essa abertura possível nas mesmas condições relativas às encomendas, pois se
diferente fosse bastaria o agente colocar uma carta dentro de um pacote
contendo cocaína, que isso conduziria à impossibilidade de abertura do volume nas
novas condições fixadas em 2023.
Ante todo o exposto, conclui-se ser possível a
abertura de encomendas enviadas pelos Correios, ou mesmo encomendas enviadas
através de transportadoras privadas, seja por funcionários dos Correios (no
atinente às postagens) ou por autoridades públicas (nos dois casos), nos
limites de suas atribuições, quando houver fundados indícios da prática de
infração penal e mediante formalização da providência.
Ressalva-se, por fim, não contemplar esta
análise a abertura de encomendas para fins de fiscalização aduaneira, inspeções
de segurança decorrentes de disposição contratual, dentre outras
especificidades. A análise, portanto, diz respeito unicamente ao cenário de suspeitas
da prática de crime.
[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5378231;
acesso em 09/03/2025.
[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15367272053&ext=.pdf;
acesso em 09/03/2025.
[3]
Inteiro Teor do Acórdão disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344580151&ext=.pdf;
acesso em 09/03/2025.
[4] “Por essas razões, dou
parcial provimento aos embargos de declaração para, acolhendo a sugestão de
redação formulada pelo Ministro Alexandre de Moraes, complementada pela
Excelentíssima Ministra Cármen Lúcia, explicitar a tese de repercussão geral
relativa ao tema 1.041 nos seguintes termos: [...]”.
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