Policiais podem ingressar em residência, sem mandado de busca e sem o consentimento do morador, para cumprir mandado de prisão?









Situação hipotética 1: Policiais estão em diligência para cumprimento de um mandado de prisão e descobrem que o foragido está em uma casa na qual reside. Não possuem mandado de busca para o imóvel e nem consentimento do morador para entrar.

Situação hipotética 2: Policiais estão em diligência para cumprimento de um mandado de prisão e descobrem que o foragido está em uma casa na qual não reside. Não possuem mandado de busca para o imóvel e nem consentimento do morador para entrar.


Doutrina e jurisprudência

Renato Brasileiro de Lima (2020, pp. 988-993) sustenta não autorizar o mandado de prisão (sem a respectiva ordem judicial de busca) o ingresso forçado na residência do foragido e nem de terceiros para fins de prendê-lo, consoante interpretação conforme a CF/88 do art. 293 do CPP, e do art. 243, § 1º, do CPP. Ressalva, porém, haver entendimento doutrinário em sentido contrário.

Eugênio Pacelli de Oliveira (2009, p. 435), por sua vez, defende como regra, nesse caso, a possibilidade de ingresso, mesmo não autorizado pelo morador, na residência da pessoa a ser aprisionada ou de terceiros, baseada na previsão contida no art. 293 do CPP, somente durante o dia. Posição similar é sustentada por NUCCI (2023): “Não há necessidade de autorização judicial específica para o arrombamento das portas e ingresso forçado no ambiente, que guarda o procurado, pois o mandado de prisão e a própria lei dão legitimidade a tal atitude”.

No âmbito da jurisprudência, julgados do STJ têm reiteradamente admitido o ingresso na residência do foragido para cumprir mandado de prisão, mesmo sem mandado de busca. No julgamento do AgRg no HABEAS CORPUS Nº 843293 - AM (2023/0274427-0), Publicação no DJe/STJ nº 3982 de 28/10/2024, por exemplo, destaca-se o seguinte argumento:

 

No presente caso, o fato do Apelante ser foragido do sistema prisional, com mandado de prisão válido, é circunstância que justifica a entrada dos agentes no local para efetuar a prisão, haja vista não haver lógica em expedir mandado de prisão para que fosse preso somente quando estivesse em via pública, fazendo de sua casa um local de proteção, desvirtuando a finalidade da inviolabilidade domiciliar prevista no artigo 5º, da Constituição Federal, que tem como fim a proteção da intimidade, da privacidade, do sossego. (Grifei)

 

Quanto ao ingresso não autorizado na residência de terceiros para cumprir mandado de prisão, mesmo sem a expedição de mandado de busca, esta possibilidade está expressamente prevista no art. 293 do CPP, in verbis:

 

Art. 293.  Se o executor do mandado verificar, com segurança, que o réu entrou ou se encontra em alguma casa, o morador será intimado a entregá-lo, à vista da ordem de prisão. Se não for obedecido imediatamente, o executor convocará duas testemunhas e, sendo dia, entrará à força na casa, arrombando as portas, se preciso; sendo noite, o executor, depois da intimação ao morador, se não for atendido, fará guardar todas as saídas, tornando a casa incomunicável, e, logo que amanheça, arrombará as portas e efetuará a prisão.

Parágrafo único.  O morador que se recusar a entregar o réu oculto em sua casa será levado à presença da autoridade, para que se proceda contra ele como for de direito. (Grifei)

 

Ademais, apesar da resistência de parte da doutrina em aceitar a aplicação integral deste dispositivo, não se observa pronunciamento expresso quanto a sua eventual dissonância com o regime constitucional atual. Destarte, o STJ tem referido esse artigo como definidor dos parâmetros para ingresso forçado em residências para cumprimento de mandados de prisão, conforme se vê no julgamento do HABEAS CORPUS Nº 868155 - SP (2023/0408550-4), Sexta Turma, Publicação no DJe/STJ nº 3849 de 19/04/2024, no qual é citado o AgRg no HC n. 837.387/PB:

 

Segundo a jurisprudência desta Corte Superior, "o art. 293, caput, do CPP, é explícito ao determinar que a existência de mandado de prisão em aberto somente autorizará a entrada forçada dos agentes policiais após a recalcitrância do 'réu' em se entregar quando instado a tanto, e ainda assim demanda a presença de 2 testemunhas, regramento não obedecido no caso em tela" (AgRg no HC n. 837.387/PB, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 13/11/2023, DJe de 17/11/2023).

 

Discussão similar também foi travada no âmbito do HC 695.808/PR, Sexta Turma, DJe 19/09/2022, envolvendo ingresso na residência de terceiros.

 

Dificuldades operacionais

Além do aspecto jurídico, necessário atentar-se para as dificuldades inerentes à operacionalidade do cumprimento de mandados de prisão. Via de regra não há intenção da pessoa a ser presa se entregar, pois muitas vezes já se trata de fugitivo do sistema penitenciário, ou pessoa cuja prisão foi decretada por demonstrar de outro modo não querer se submeter à persecução penal. Então, apesar de ser possível a colaboração do sujeito passivo no sentido de se entregar no momento da abordagem, este não é um pressuposto que deve nortear o planejamento para a captura.

Nessa linha, ora cita-se artigo de Tiago Gonçalves Escudero (2019), intitulado “Cumprimento de mandado de prisão: aspectos jurídicos, operacionais e táticos”, no qual, além de considerar a dimensão jurídica da temática, também pondera quanto aos aspectos operacionais e táticos.

Feitas estas considerações, de pronto se nota a necessidade da abordagem correspondente se dar com rapidez e com as óbvias cautelas de segurança. Daí não ser viável, em grande parte das vezes, a solução proposta por alguns doutrinadores de, uma vez constatado que o foragido está em determinada residência, e havendo recusa do morador em autorizar a entrada dos policiais, estes buscarem o Judiciário para obter ordem judicial específica para entrada no imóvel. Primeiro porque ao saber que está sendo procurado, o foragido pode simplesmente empreender fuga pulando muros e passando por vários terrenos, sem que os policiais pelo menos saibam da fuga. Ainda, dependendo da situação (por exemplo, acusados por crimes que provocam grande constrangimento público), não se descarta a possibilidade de ele tentar contra a própria vida ou de terceiros e, não estando os policiais dentro do imóvel, a intervenção para tentar evitar o pior pode ser tardia. Por fim, mesmo sem exaurir as hipóteses de dificuldades, convém observar não ser tão automática a obtenção de um pronunciamento judicial nesses casos (para autorizar a entrada) como querem pressupor os defensores dessa solução.

Assim, para quem vai efetivamente cumprir mandados de prisão, além da preocupação com a dimensão jurídica do ato, não se pode ignorar a dimensão operacional, pois trata-se de intervenção de evidente risco, visto se estar diante de uma situação na qual uma pessoa será privada de sua liberdade, sendo imprevisível a sua reação no momento da abordagem.

 

Conclusão

Diante das referências apresentadas, conclui-se haver consistente posição doutrinária e jurisprudencial, apesar de respeitáveis posições em sentido contrário, sustentando ser possível o ingresso forçado em residências para cumprimento de mandado de prisão, apenas durante o dia, independentemente da expedição de mandado de busca. Essa posição se ampara na lógica de que uma das possibilidades de ingresso em domicílio, mesmo sem autorização do morador, é a existência de ordem judicial (art. 5º, XI, da CF/88), e, no caso, o mandado de prisão materializa essa ordem (REIS; GONÇALVES, 2022). Além do quê, o art. 293 do CPP autoriza expressamente essa medida.

Como esse entendimento permite o ingresso forçado de policiais em imóvel cujo endereço não está especificado no mandado judicial, convém agir com cautela, angariando-se informações, com segurança, quanto à presença do foragido no interior da residência na qual será realizada a diligência, conforme exige o próprio art. 293 do CPP.

É claro que, na maioria das vezes, a ação precisa ser rápida (pois como já se pontuou, a prisão é medida extremamente gravosa, sendo imprevisível a reação do sujeito passivo no momento da abordagem), porém existem formalidades previstas para realização da captura em domicílio que não podem ser ignoradas. Assim, não se descarta a possibilidade de justificar a impossibilidade de cumprimento de alguma delas. Por exemplo, quanto a exigência contida no art. 293 do CPP de duas testemunhas para realização da entrada forçada, NUCCI (2023) pondera o seguinte: “Se inexistirem testemunhas, o ingresso forçado poderá ocorrer do mesmo modo, embora, nesse caso, possa haver maior problema para o executor da ordem, em caso de acusação de abuso, por parte do morador”. Assim, a meta deve ser cumprir todas as formalidades impostas pela legislação, porém, ocorrendo razões de força maior, em algumas hipóteses há possibilidade de flexibilização, mas sempre com a respectiva apresentação de justificativa plausível. No caso ilustrado, entende-se que a diligência gravada em vídeo pode suprir a não convocação de duas testemunhas por justificada impossibilidade. 

Considerando ser matéria sensível na prática policial o ingresso em domicílios sem mandado judicial específico indicando o imóvel no qual deve ser realizada a diligência, Rodrigo Foureaux (2020) recomenda, com razão, serem as justificativas quanto às providências adotadas devidamente formalizadas:

 

O ingresso em imóveis por policiais, de forma irregular, pode caracterizar o crime de abuso de autoridade (art. 22 da Lei 13.869/19), caso esteja comprovado que o policial adentrou com a finalidade específica de prejudicar o morador ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal (art. 1º, § 1º, da Lei 13.869/19).

Em razão das divergências de entendimentos, conforme exposto, caso o policial adentre à residência por acolher um dos entendimentos não há que se falar em abuso de autoridade, uma vez que estará descaracterizado o dolo específico de abusar da autoridade.

Todas as circunstâncias que levarem os policiais a adentrarem na residência deverão ser relatadas no Boletim de Ocorrência. (Grifei)

 

Outro ponto interessante que convém trazer à discussão diz respeito à possibilidade do terceiro que conscientemente abriga foragido incorrer no crime previsto no art. 348 do CP (favorecimento pessoal). Nesse caso pode-se indagar se não caberia o ingresso forçado no domicílio correspondente, diante da não autorização desse terceiro, mesmo à noite, para efetuar a prisão deste e também a captura do foragido. Ocorre, contudo, que em tal caso tem entendido a doutrina não ser possível concluir pela prática desse crime quando se trata de situação ocorrida durante a noite, por força da previsão contida no art. 293 do CPP. Assim leciona, por exemplo, Cleber Masson (2015):

 

Nada obstante a presença do fato típico, não há favorecimento pessoal no comportamento do morador que impede o ingresso da autoridade pública em seu domicílio, durante a noite, mesmo que seja para prender um fugitivo em obediência a mandado judicial. Incide a excludente da ilicitude atinente ao exercício regular de direito (CP, art. 23, inc. III, in fine), assegurado pelo art. 5.º, inc. XI, da Constituição Federal [...]

 

Do mesmo modo entendem, por exemplo, NUCCI (2023), MEDEIROS (2024), bem como REIS e GONÇALVES (2022).  Então, essa imputação somente é possível, consoante sustenta a doutrina, em relação a fatos ocorridos durante o dia.

Mesmo diante dessa posição consolidada, convém, entretanto, trazer algumas ponderações adicionais sobre o assunto, considerando a sua grande relevância para a atividade policial.

Imagine-se, por exemplo, uma situação na qual policiais são acionados, durante à noite, para prenderem um foragido, chamado JOSÉ, contra quem há mandado de prisão preventiva, considerando a imputação da prática de crime de homicídio. A informação tem origem na família da vítima que apresenta, inclusive, vídeo dele ingressando minutos antes na casa de um terceiro (chamado JOÃO), que estaria a ele dando abrigo. Ainda, os noticiantes dão conta que JOSÉ sairá do local antes de amanhecer, pois tem sido muito cauteloso, visto o receio de ser capturado. Os policiais então se dirigem à casa, intimam JOÃO, mas este alega não estar a pessoa procurada na sua casa, e que também não autoriza o ingresso no imóvel. Então, conforme prevê o art. 293 do CPP, os policiais ficam fazendo vigilância em via pública à espera do amanhecer. Sobrevindo este, entram no imóvel, porém não constatam a presença do procurado no local. Solicitam imagens de câmeras de segurança do quintal de um dos imóveis vizinhos, e verificam que, durante a madrugada, JOSÉ fugiu pulando muros laterais.

Então, diante dessa situação, JOÃO não teria praticado nenhum crime, considerando a excludente de ilicitude de exercício regular de direito?

Aqui já não se discute, em primeiro plano, a possibilidade de ingresso ou não no imóvel para cumprimento de mandado de prisão durante à noite, mas sim a materialidade ou não do crime de favorecimento pessoal, pois em se entendendo pela presença desta, a Constituição Federal é clara no sentido de permitir a entrada forçada em domicílio, durante o dia ou à noite, para se efetivar a prisão do infrator quando houver flagrante delito.

Assim, pelo entendimento prevalecente na doutrina, a legislação processual penal, ao regular o cumprimento de mandado prisão, acabou por interferir no direito material, estabelecendo situação específica de exclusão de ilicitude.

Na situação ilustrada, por exemplo, JOÃO poderia ter escondido JOSÉ durante à noite, e não haver diligências para a sua captura (sem necessidade de análise, portanto, em um primeiro momento, do art. 293 do CPP), porém havendo apuração posterior da sua conduta, em tese delituosa, ocasião em que, a defesa de JOÃO poderia alegar não haver crime, pois este estaria em exercício regular de direito.

Assim, apesar de incoerente nesse ponto (visto não se confundir entrada forçada em domicílio para fins de prisão em flagrante com entrada para cumprir ordem judicial), realmente o art. 293 do CPP aparenta trazer uma excludente de ilicitude ao tolerar expressamente a conduta do terceiro que abriga criminoso em sua residência durante à noite, inclusive impedindo a sua prisão nesse momento.

Ademais, na hipótese de haver algum outro crime passível de prisão em flagrante ocorrendo o interior do imóvel (tráfico de drogas, por exemplo), uma vez sendo possível o ingresso forçado mesmo durante à noite, nada obsta que seja cumprido mandado de prisão de eventual foragido que esteja no local, pois não há vedação nenhuma para cumprimento desse tipo de ordem judicial à noite. A proibição é apenas para ingresso domiciliar nesse período, sem autorização do morador. Então, estando a entrada legitimada por outra razão, e lá sendo encontrado fortuitamente o foragido, não há óbice ao cumprimento da ordem de prisão.

Ante todo o exposto, resumidamente se tem o seguinte cenário quanto ao ingresso forçado (sem autorização do morador) da polícia, em domicílio (do próprio procurado ou de terceiro), para cumprimento de mandado de prisão, independentemente de ordem judicial específica de busca:

a) Durante o dia, há doutrina e jurisprudência consistentes admitindo o ingresso, apesar de haver posições em sentido contrário, sustentando ser sempre necessária ordem judicial específica para entrada no imóvel no qual se diligenciará; e

b) Durante a noite, não é possível, visto a impossibilidade de ingresso forçado em domicílios nesse período para cumprimento de ordens judiciais.


Referências bibliográficas

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de direito processual penal, e-book. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

ESCUDERO, Tiago Gonçalves. Cumprimento de mandado de prisão: aspectos jurídicos, operacionais e táticos. Jus.com.br, Teresina, nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78052/cumprimento-de-mandado-de-prisao-aspectos-juridicos-operacionais-e-taticos. Acesso em: 18 jan. 2025.

FOUREAUX, Ricardo. O mandado de prisão, por si só, autoriza o ingresso em domicílio? abr. 2020. Disponível em: https://atividadepolicial.com.br/2020/04/21/o-mandado-de-prisao-por-si-so-autoriza-o-ingresso-em-domicilio/. Acesso em: 18 jan. 2025.

MEDEIROS, Flavio Meirelles. Código de processo penal comentado. 2. ed. Porto Alegre: Ciências Jurídicas, 2024. Disponível em: https://flaviomeirellesmedeiros.com.br/artigo-293o-cpp/. Acesso em: 18 jan. 2025.

REIS, Alexandre Cebrian Araújo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito processual penal, e-book. 11. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022.

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado, v. 3, parte especial, e-book. São Paulo: Método, 2015.


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