Em quais situações pode ser realizada busca pessoal pela polícia, independentemente do consentimento do abordado e sem mandado judicial?


Publicação atualizada em 06/04/2025

Legislação, doutrina e jurisprudência

No cenário atual há recorrentes debates quanto à legalidade de buscas pessoais realizadas pela polícia, em algumas situações ocorrendo até mesmo o reconhecimento da nulidade de provas colhidas nessas circunstâncias bem como a ilegalidade de eventual prisão em flagrante.

Inicialmente convém lembrar ser a busca pessoal prevista no CPP, com as seguintes diretrizes expressas: a) “Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior[1]” (art. 240, § 2º, do CPP); b) “Art. 243.  O mandado de busca deverá: I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem[2]; [...]”; c) “Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar[3]; e d) “Art. 249.  A busca em mulher será feita por outra mulher, se não importar retardamento ou prejuízo da diligência”.

Assim, o art. 244 do CPP delimita as hipóteses de cabimento de busca pessoal, independentemente de mandado judicial ou de consentimento do sujeito passivo da medida, sendo o fundamento que causa mais debates na atualidade a fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito. Nesse passo, tanto STJ quanto STF têm construído vários parâmetros de entendimento definidores da existência dessa fundada suspeita.

Na edição nº 236[4], de 23/05/2024, da publicação denominada “Jurisprudência em Teses”, foram destacadas, pela Secretaria de Jurisprudência do STJ, as seguintes teses identificadas nos precedentes daquele Tribunal sobre busca pessoal no âmbito processual penal:

 

1) Exige-se, para a realização de busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, fundada suspeita (justa causa) baseada em juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada por indícios e circunstâncias do caso concreto, que evidenciem a urgência de se executar a diligência.

2) O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como "rotina" ou "praxe" do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

3) A existência de fundada suspeita deve ser aferida com base em elementos prévios à busca pessoal ou veicular, pois a descoberta casual de objetos ilícitos ou situação de flagrância, durante a diligência, não convalida a ilegalidade da abordagem policial.

4) Denúncias anônimas ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta não são suficientes para autorizarbusca pessoal ou veicular.

5) O nervosismo do suspeito percebido pelos agentes públicos não é suficiente para caracterizar a fundada suspeita para fins de busca pessoal, uma vez que essa percepção é dotada de excesso de subjetivismo.

 6) A busca pessoal, veicular ou domiciliar é viciada se baseada somente em denúncia anônima e desacompanhada de outros elementos preliminares indicativos de crime.

7) A denúncia anônima pode legitimar as diligências realizadas se for corroborada por outros elementos de prova que indiquem a presunção de o suspeito estar na posse de objetos ilícitos, como o ato de o suspeito dispensar algo no chão ou expressar nervosismo ao notar a aproximação da guarnição.

8) O fato de o acusado dispensar algo no chão ao notar a aproximação da polícia configura fundada suspeita apta a justificar a busca e apreensão sem mandado judicial, pois indica presunção de posse de objetos ilícitos.

9) A denominada "busca pessoal por razões de segurança" ou "inspeção de segurança", que ocorre rotineiramente em aeroportos, rodoviárias, prédios públicos, eventos festivos e locais com grande circulação de pessoas, não caracteriza busca pessoal para fins penais.

10) A Guarda Civil Municipal está autorizada a realizar busca pessoal em situações de flagrante delito e nas hipóteses em que, além da existência de fundada suspeita, houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários.

11) Agentes de segurança privada não estão autorizados a realizar busca pessoal, atividade afeta a autoridades judiciais, policiais ou seus agentes. (Grifei)

 

Na edição nº 237 da mesma publicação foram destacadas as seguintes teses de interesse direto para o assunto ora abordado[5]:

 

8) A busca veicular, excetuadas as hipóteses em que o automóvel é utilizado para fins de habitação, equipara-se à busca pessoal, na qual é suficiente a presença de fundada suspeita de crime, sem exigência de mandado judicial.

[...]

9) O simples fato de o acusado ter antecedente criminal, por si só, não autoriza busca veicular, quando ausentes outros elementos a justificar busca minuciosa no interior do veículo.

 

 

Em 30/03/2025, a Secretaria de Comunicação Social do Superior Tribunal de Justiça publicou matéria especial com o título “A interpretação do STJ sobre as possibilidades de busca pessoal e a validade das provas encontradas”, no qual destacou os principais julgados do Tribunal quanto a temática em evidência[6].

Então, verifica-se, de forma resumida e em linhas gerais, ser cabível, segundo teses fixadas pelo STJ[7], a busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, realizada pela polícia, exclusivamente com finalidade probatória, quando houver fundada suspeita[8], baseada em juízo de probabilidade, aferida com base em elementos prévios de modo objetivo e devidamente justificada por indícios e circunstâncias do caso concreto, que evidenciem a urgência de se executar a diligência.

O STF, a seu turno, caminha em sentido similar, conforme bem enfatizado por Carina Lucheta Carrara (2024):

 

Em suma, tanto para o STF, em razão do que decidido no Tema 280 para o ingresso em domicílio sem mandado judicial, e reverberando as mesmas premissas para as buscas pessoais e veiculares, como para o STJ, no que vem decidindo e firmando em termos de standard probatório para as medidas de busca pessoal e veicular, tem-se o seguinte: a justa causa (fundadas razões ou fundada [atitude] suspeita) tem de ser aferida com base anterior à diligência e justificada a posteriori, da forma mais objetiva e precisa possível.



Convém lembrar, outrossim, não se confundir a busca pessoal de natureza processual penal com aquela realizada por razões de segurança. Essa temática, inclusive, foi destacada em uma das teses antes descritas, formuladas com base em precedentes do STJ[9]. Daí a doutrina afirmar (LIMA, 2020, pp. 806-807) ter a busca pessoal duas subespécies: a) busca pessoal por razões de segurança; e b) busca pessoal de natureza processual penal. Quanto à primeira, “Sua execução tem natureza contratual, ou seja, caso a pessoa não se submeta à medida, não poderá se  valer do serviço ofertado nem tampouco frequentar o estabelecimento” (LIMA, 2020, p. 806). Vide, ainda, sobre a temática o artigo denominado “Abordagem policial e busca pessoal” (FOUREAUX; GODINHO, 2022), no qual os autores detalham hipóteses do que chamam de busca pessoal preventiva ou administrativa.

Quanto à busca por razões de segurança, o STJ, em importante julgado para elucidar quanto à legalidade das inspeções realizadas pelo policiamento ostensivo em bagagens de passageiros de meios de transportes públicos, decidiu o seguinte[10]:

 

Assim, forçoso concluir que a inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros do ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, teve natureza administrativa, ou seja, não se deu como busca pessoal de natureza processual penal e, portanto, prescindiria de fundada suspeita. Dito de outro modo, se a bagagem dos passageiros poderia ser submetida à inspeção aleatória na rodoviária ou em um aeroporto, passando por um raio-X ou inspeção manual detalhada, sem qualquer prévia indicação de suspeita, por exemplo, não há razão para questionar a legalidade da vistoria feita pelos policiais rodoviários federais, que atuaram no contexto fático de típica inspeção de segurança em transporte coletivo. (STJ - HC: 625274 SP 2020/0298437-2, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 17/10/2023, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/10/2023)[11]


Ante ao exposto, traçadas as linhas gerais do cabimento da busca pessoal, pode-se avançar para a análise das dificuldades operacionais inerentes à execução dessa medida.

 

Dificuldades operacionais

Inicialmente convém observar que os tribunais superiores têm travado debates não somente para definir os requisitos gerais para realização de busca pessoal sem mandado judicial, mas também ingressado em discussões inerentes a situações fáticas autorizadoras ou não dessa diligência. Não raras vezes há divergências entre os julgadores.

Por exemplo, conforme noticiado pelo STF, este, em decisão no âmbito do RE 1492256, julgado em 25/02/2025, reformou, por maioria, decisão do STJ, reconhecendo o Supremo a presença de justa causa para busca pessoal na seguinte situação concreta[12]:

 

No caso dos autos, policiais militares faziam ronda no bairro Imaruí, em Itajaí (SC), quando encontraram a mulher sentada na via pública, em frente a um casebre abandonado, conhecido ponto de tráfico de drogas na região. Foi feita a abordagem, e, em sua bolsa, foram encontradas 87 porções de crack e dinheiro.

Condenada em primeira e segunda instâncias, a defesa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que acolheu a tese de que a revista pessoal foi ilegal e absolveu a mulher. Para aquela corte, não houve razões que a justificassem a medida.

Contra essa decisão, o Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao STF por meio do Recurso Extraordinário (RE) 1512600. Segundo o órgão, a revista foi devidamente fundamentada, pois a mulher foi abordada em conduta suspeita e com razoável quantidade de drogas. Em decisão individual, o relator, ministro Edson Fachin, negou seguimento ao recurso. O MPF então recorreu então por meio de agravo regimental.

[...]

No julgamento realizado nesta terça-feira, prevaleceu o voto do ministro Dias Toffoli. Em seu entendimento, no caso, a busca pessoal sem mandado judicial foi justificada por elementos objetivos: a abordagem se deu em local conhecido pelo intenso tráfico de drogas, a mulher era a única pessoa presente no local, onde foram encontradas porções de droga, e posterior perícia do celular comprovou seu envolvimento com o tráfico. (Grifei)

 

De pronto percebe-se serem inúmeras as situações concretas nas quais se pode concluir pela presença de justa causa para a busca pessoal sem mandado judicial, obedecidas as diretrizes gerais fixadas pela jurisprudência.

As constantes discussões sobre matéria fática, chegando, inclusive, a tribunais superiores, e com decisões divergentes, demonstram sobejamente o quanto é difícil para o policial, ao se deparar com atitude suspeita sob sua ótica, decidir pela abordagem ou não. Muitas vezes essa decisão tem que ser tomada em segundos, e não raro em cenário de grave risco (caso de suspeito na posse ilegal de arma de fogo, p.ex.).

Assim, a indefinição das situações concretas nas quais haveria justa causa para a busca pessoal acaba representando uma dificuldade operacional para a atuação policial. O debate se prende no aspecto jurídico, porém não se deve ignorar a dimensão operacional.

Por outro lado, não se pode também reduzir ao extremo a possibilidade de valoração interpretativa do policial (mesmo em certos aspectos subjetivos) quanto à presença de justa causa para a realização da diligência em comento.  Muito pelo contrário, necessário prestigiar a visão de quem está no cenário real, pois somente essa pessoa tem a exata noção de todas as variáveis susceptíveis de percepção nesse dado momento.

 

Conclusão

Ante ao explanado, sendo certo quanto à impossibilidade da busca pessoal realizada com base na legislação processual penal sem a presença de justa causa e demais requisitos gerais fixados pela jurisprudência, entende-se também não ser o caso de exigir do policial uma ampla e demorada análise antes de decidir por abordar uma pessoa em via pública, até mesmo porque na maior parte das vezes as situações suspeitas surgem repentinamente, sendo muito efêmera a oportunidade de intervenção.

Ainda, não pode também o policial ficar inseguro em situação na qual vislumbre riscos a ele ou a terceiros, hesitando em abordar e revistar suspeito por dúvidas quanto à presença ou não de justa causa para a diligência.

Certamente não são admitidas abordagens fundadas em discriminação, mero capricho ou em outras causas ilegítimas, mas isso não implica dizer estar impedido o policial de fazer uma aferição subjetiva da situação, em consonância com os fatores objetivos.

Os parâmetros gerais para fundamentar a busca pessoal sem mandado judicial já estão bem amadurecidos na jurisprudência (vide tópicos anteriores). O grande desafio agora diz respeito à discussão da presença desses parâmetros gerais (especialmente a justa causa) em variados casos concretos levados a julgamento. Enxerga-se, nesse peculiar aspecto, como impossível aos tribunais superiores tratarem de todas as situações concretas possíveis, justificadoras da diligência em comento.

Nesse passo, não é viável elaborar um manual relacionando todas as situações concretas nas quais há justa causa para realizar a busca pessoal, seja pelo número indefinido delas, seja pelas divergências de entendimentos, conforme antes demonstrado.

Então, resta ao policial se pautar pelos parâmetros gerais já fixados pela jurisprudência, esforçando-se para fazer uma rápida leitura da realidade e decidir (sem hesitação) pela realização ou não da diligência nos casos concretos. 

 

Referências bibliográficas

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020.

CARRARA, Carina Lucheta. Ingresso em domicílio e busca pessoal: Tema 280 do STF e jurisprudência do STJ. Consultor Jurídico, São Paulo, 02 dez. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-dez-02/ingresso-em-domicilio-e-busca-pessoal-tema-280-do-stf-e-jurisprudencia-do-stj/. Acesso em: 03 mar. 2025.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A inspeção de segurança nas bagagens dos passageiros de ônibus, em fiscalização de rotina realizada pela Polícia Rodoviária Federal, tem natureza administrativa e não precisa de fundada suspeita. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: <https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/0bd81786a8ec6ae9b22cbb3cb4d88179>. Acesso em: 03 mar. 2025.

FOUREAUX, Rodrigo; GODINHO, Eduardo. Abordagem policial e busca pessoal. Disponível em: https://atividadepolicial.com.br/2022/09/04/abordagem-policial-e-busca-pessoal/; acesso em 06/04/2025


[1] Art. 240.  A busca será domiciliar ou pessoal.

§ 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para:

a) prender criminosos;

b) apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos;

c) apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos;

d) apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso;

e) descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu;

f) apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato;

g) apreender pessoas vítimas de crimes;

h) colher qualquer elemento de convicção. (Grifei)

[2] Grifei

[3] Grifei

[7] Especialmente as teses 1, 2 e 3, destacadas na edição nº 236 da “Jurisprudência em Teses”, do STJ.

[8] “[...] de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito [...]” (art. 244 do CPP).

[9] Número 9, edição nº 236 da “Jurisprudência em Teses”.

[11] Entendimento similar se tem no HC n. 861.278/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 23/4/2024, DJe de 26/4/2024, citado no julgamento do RECURSO ESPECIAL Nº 2078594 - BA (2023/0201808-7), Publicação no DJEN/CNJ de 06/02/2025 (disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=290373297&num_registro=202302018087&data=20250206; acesso em 23/02/2025.


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