Questões jurídicas polêmicas e a atuação policial no Brasil











1    Introdução

Não é novidade para os policiais brasileiros o fato de existirem várias controvérsias jurídicas que afetam diretamente a atividade estatal que são incumbidos de desempenhar. Muitas delas impactam, inclusive, em decisões a serem tomadas de forma imediata em situações de elevado risco, que podem interferir na segurança dos próprios policiais e/ou de terceiros, ou mesmo afetar direitos individuais de suspeitos/investigados. 

Fato é que tais controvérsias ainda são debatidas de forma insuficiente na doutrina e na jurisprudência. E isso é especialmente preocupante para os policiais, pois mesmo querendo adotar um padrão de conduta (falo do aspecto jurídico, pois normalmente o aspecto operacional é bem definido) em determinada situação, muitas vezes não há uma posição jurídica clara de qual seria a forma correta de agir.

Aliás, não é novidade na doutrina essa percepção de ser necessário avançar, no Brasil, de forma mais robusta na discussão dos aspectos jurídicos da atuação policial em situações práticas em relação às quais a doutrina e jurisprudência são omissas ou apresentam debate ainda incipiente. Nesse aspecto menciono, por exemplo, trecho do Prefácio de William Douglas contido na obra de Rogério Greco intitulada Atividade Policial: Aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais (2009):

Um dos problemas mais comuns nos livros que tratam da Polícia é o de focar tão somente na (meritória e necessária) defesa dos direitos individuais, indicando o que a polícia pode ou não, deve ou não fazer, mas esquecendo-se de tratar o tema de forma a dizer o “como fazer”. Muitos tratam do que interessa ao cidadão, e isto é ótimo, mas poucos tratam do que interessa ao policial, das informações que eles precisam para trabalhar melhor. (Grifei)

 

Assim, torna-se necessário avançar nesse debate em busca de soluções para a problemática ora preliminarmente suscitada.

 

2    Direito de Polícia Judiciária

Diante da insuficiência de debate técnico-jurídico relativo às práticas policiais com foco na “forma correta de fazer”, entende-se de fundamental importância a construção doutrinária emergente que pugna pela necessidade de se construir bases autônomas de um Direito de Polícia Judiciária, assim considerado aquele que (PEREIRA, 2019, p. 140):

 

 [...] em síntese, concerne ao direito de organização e de procedimento com que a Polícia Judiciária exerce suas funções nas relações tanto com os poderes estatais e demais órgãos do poder punitivo, bem como com o cidadão em geral, tendo em vista uma efetiva garantia dos direitos fundamentais no processo penal. Trata-se de um direito objetivo, cujo interesse é sobretudo coletivo, mas exigível em função de direitos subjetivos individuais.

 

A concretização da ideia acima mencionada pode levar a uma sistematização mais segura dos conhecimentos técnico-jurídicos necessários para, por exemplo, a efetivação de atos de Polícia Judiciária pressupondo parâmetros menos incertos.

Há, contudo, muitas dificuldades ainda a serem superadas até se chegar a uma estruturação sólida de conhecimentos afeitos à matéria policial sob o aspecto jurídico, mesmo quando se fala em um Direito de Polícia em geral, conforme pontua António Francisco de Sousa (2009, XXVIII), visto ele estar em uma zona de confluência de outros ramos do Direito, além de utilizar conceitos próprios e termos empregados em variados outros ramos, mas com acepção diversa.

Por seu turno, Eliomar da Silva Pereira (2019, p. 81) também reforça quanto à insuficiência de estudos jurídicos tanto no tocante ao Direito de Polícia Judiciária quanto ao Direito Geral de Polícia: “O Direito de Polícia Judiciária sofre dos mesmos problemas que o Direito Geral de Polícia – a ‘negligência intelectual’ da doutrina jurídica em geral, vindo ainda acrescido, no Brasil, de uma incerteza acerca de seu regime jurídico [...]”. O mesmo autor (PEREIRA, 2019, p. 89) menciona a crescente produção normativa bem como jurisprudencial que cada vez mais tratam de temas relativos à Polícia Judiciária.

Assim, ao passo que questões jurídicas ligadas à atividade de Polícia Judiciária são cada vez mais objeto de embates judiciais e de normatizações, a ciência jurídica continua relegando as mesmas a uma análise superficial, talvez achando ser o labor policial de pouca importância no mundo jurídico, desconsiderando a realidade de que a elucidação de crimes efetivamente acontece (em regra) nessa fase, apesar de depender, por óbvio, de uma posterior confirmação judicial.

Ademais, não se pode esquecer que a inobservância de certas condutas durante a fase investigativa pode prejudicar seriamente a persecução penal como um todo, como é o caso do acesso a conversas em celulares de presos sem autorização judicial, ingresso em residências fora das hipóteses legais etc.

 

3   Particularidades da prática policial e insegurança jurídica

Outra questão a se observar é que a análise jurídica inerente à atividade policial não pode desconsiderar a impositiva realidade prática.

Torna-se difícil, portanto, para um jurista desconhecedor da prática policial visualizar uma solução para um problema jurídico-policial sem ter a real dimensão da dinâmica de campo desta atividade, com seu imprescindível vértice operacional. Isto, por óbvio, quando se trata de questão relacionada a esse aspecto.

Por exemplo, pode-se alegar quanto à necessidade dos policiais, desde o primeiro momento, ingressarem na residência do investigado para cumprir mandado judicial de busca e apreensão já acompanhados de duas testemunhas do povo; porém se sabe que, sob o aspecto operacional, isto é temerário, considerando a possibilidade de resistência e confronto neste momento inicial, havendo desse modo a necessidade de uma inspeção prévia de segurança.

Sob o aspecto teórico, convém lembrar dever a prática policial pautar a sua atuação dentro dos limites impostos pelo princípio da proporcionalidade, tanto sob a vertente da proibição de excessos quanto da proibição da proteção deficiente/insuficiente (CHEQUER, 2013)[1]. Inserindo-se esta temática em uma discussão maior quanto aos aspectos positivos e negativos do garantismo penal (FERREIRA, 2009).

Tais considerações são consignadas para se ter uma melhor dimensão da problemática ora exposta.

Se quer aqui, portanto, desenhar o cenário da realidade, no qual o policial, ante a ocorrência de um crime, especialmente os mais graves, é pressionado pela sociedade para atuar no sentido de elucidar tal delito e viabilizar a responsabilização dos envolvidos com celeridade, cabendo-lhe executar essa tarefa visando a garantia da ordem pública, mas sempre respeitando os direitos dos investigados/suspeitos, e com as cautelas necessárias quanto à sua segurança e de terceiros.    

Diante disso, o policial precisa, portanto, agir de forma operacionalmente segura (se necessita, por exemplo, em situação de flagrante, ir tentar prender o responsável em local extremamente hostil, não pode simplesmente fazê-lo sem antes adotar todas as cautelas que garantam a segurança da missão), rapidamente (pois assim exige a sociedade e a própria legislação em algumas situações – de flagrante, por exemplo) e, ainda, atento para não violar direitos e garantias fundamentais[2]. E tudo isso deve ser materializado, geralmente, em situações de campo, não raras vezes acontecendo resistência dos criminosos em face da ação policial.

Trata-se, desse modo, de um cenário estressante, mas em relação ao qual o policial, pela natureza de sua profissão, deve estar preparado para enfrentar.

Ocorre, todavia, que a insegurança quanto a entendimentos jurídicos inerentes à legalidade ou não de certos procedimentos policiais acaba por se somar ao contexto adverso acima ilustrado, daí se argumentar logo no início desse texto quanto à necessidade de um maior aprofundamento da doutrina no atinente a questões jurídico-policiais.  E isso é especialmente preocupante porque normalmente as violações de direitos por uma atuação policial, mesmo que bem-intencionada, mas eventualmente considerada ilegal, são tidas como graves ou gravíssimas (violação de domicílio, prisão ilegal etc.), trazendo consequências indesejadas para os envolvidos e para a própria persecução penal.

Outrossim, algum crítico do ponto de vista ao norte ilustrado pode alegar ser a polêmica naturalmente inerente ao Direito, não tendo como fugir disso. Isso é verdade! Entretanto, quanto menos debate, quanto menos estudos sobre alguma questão polêmica, menor a chance de se alcançar uma posição pacífica ou mesmo visivelmente majoritária.

Diante do exposto, apenas para comprovar a importância de se incentivar o estudo mais profundo de questões jurídicas de interesse policial direto, apresento a seguir exemplos de algumas delas que se revelam como essenciais no cenário atual:

a) Necessidade, conforme sustentado em jurisprudência do STJ, de fundadas suspeitas concretas para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, inclusive com reconhecimento da ilicitude da prova colhida em tal circunstância caso não haja descrição objetiva e justificada por indícios de que a pessoa a ser abordada esteja na posse de coisas ilícitas, evidenciando-se assim a urgência para a diligência (STJ, 2022a)[3];

b) Discussão quanto aos parâmetros a serem observados para ingressos em domicílios sem mandado judicial, mesmo a diligência levando à prisão em flagrante do morador, também com a consequência da anulação das provas obtidas caso se considere não terem sido observadas tais exigências (STJ, 2022b); 

c) Ingresso em residência para cumprir mandado de prisão, sem ordem judicial expressa autorizando a entrada no imóvel específico em que se pretende realizar a diligência[4]; e 

d) Limites de horário para cumprimento de mandados de busca e apreensão[5].


Outras questões essenciais de interesse direto para a área policial também foram objeto de intensos debates judiciais no passado, tais como as seguintes: a) possibilidade de investigações conduzidas pelo Ministério Público (STF, RE 593.727-MG; 14.05.2015)[6]; b) suposta diferenciação entre funções de Polícia Judiciária e de polícia investigativa (STJ, HC 303494-SC; 17.06.2015)[7]; c) Súmula Vinculante 14 (STF, 2009), dispondo sobre o direito do defensor de acesso aos autos de procedimento investigatório[8]; e d) Súmula Vinculante 11 (STF, 2008), estabelecendo regras para o uso de algemas.

 

4    Conclusão


Ante todo o exposto, conclui-se haver várias questões jurídicas controversas cujas soluções impactam diretamente na atividade policial, sendo apenas algumas delas citadas expressamente neste artigo. Muitas outras podem ser suscitadas, como por exemplo: parâmetros para entrevistas policiais; participação do advogado do investigado nas oitivas de testemunhas na fase de inquérito policial; hipóteses admissíveis da realização de disparos de arma de fogo por policiais etc.

Desse modo, entende-se serem tais referências suficientes para demonstrar o quão importante é a doutrina lançar os olhos com mais atenção sobre essa área, para que em um futuro próximo se tenha um conjunto de conhecimentos mais bem estruturado sobre um modelo jurídico padronizado e detalhado de atuação policial.



5  Referências bibliográficas

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Revista pessoal baseada em “atitude suspeita” é ilegal, decide Sexta Turma. STJ, Brasília, 20 abr. 2022a. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/20042022-Revista-pessoal-baseada-em-%E2%80%9Catitude-suspeita%E2%80%9D-e-ilegal--decide-Sexta-Turma.aspx. Acesso em: 30 jan. 2024.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Asilo inviolável, mas nem sempre: o STJ e o ingresso policial em domicílio. STJ, Brasília, 28 ago. 2022b. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28082022-Asilo-inviolavel--mas-nem-sempre-o-STJ-e-o-ingresso-policial-em-domicilio.aspx. Acesso em: 30 jan. 2024.

CHEQUER, Cláudio. Manifestações populares no Brasil e o princípio da proporcionalidade. Ministério Público Federal, Rio de Janeiro, 07 fev. 2013. Disponível em: http://www.prrj.mpf.mp.br/sala-de-imprensa/artigos-de-procuradores/manifestacoes-populares-no-brasil-e-o-principio-da-proporcionalidade. Acesso em: 30 jan. 2024.

ESCUDERO, Tiago Gonçalves. Cumprimento de mandado de prisão: aspectos jurídicos, operacionais e táticos. Jus.com.br, Teresina, 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78052/cumprimento-de-mandado-de-prisao-aspectos-juridicos-operacionais-e-taticos. Acesso em: 30 jan. 2024.

FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. A proibição de excessos no direito material e processual penal. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2263, 11 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13482/a-proibicao-de-excessos-no-direito-material-e-processual-penal/3. Acesso em: 30 jan. 2024.

FERREIRA, Gecivaldo Vasconcelos. Princípio da proibição da proteção deficiente. Consultor Jurídico, São Paulo, 04 out. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-out-04/principio-proibicao-protecao-outra-face-garantismo/. Acesso em: 30 jan. 2024.

FREITAS, Vladimir Passos de. Segurança pública, insegurança jurídica e a ação da Polícia Federal. Consultor Jurídico, São Paulo, 26 mar. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mar-26/seguranca-publica-inseguranca-juridica-acao-policia-federal/. Acesso em: 30 jan. 2024.

GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais. 2. ed. Niterói: Impetus, 2009.

MIGALHAS. STJ: É inválida busca e apreensão em domicílio às 5 da manhã. Migalhas.com.br, Ribeirão Preto, 06 dez. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/398519/stj-e-invalida-busca-e-apreensao-em-domicilio-as-5-da-manha. Acesso em: 30 jan. 2024.

MUGNATTO, Sílvia. Especialistas sugerem mudanças na legislação após decisão do STJ que restringe abordagens policiais. Agência Câmara de Notícias, Brasília, 02 jun. 2022. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/883011-especialistas-sugerem-mudancas-na-legislacao-apos-decisao-do-stj-que-restringe-abordagens-policiais/. Acesso em: 30 jan. 2024.

PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução ao Direito de Polícia Judiciária. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

SOUSA, António Francisco de. A polícia no estado de direito. São Paulo: Saraiva, 2009.



[1] No artigo intitulado “Manifestações populares no Brasil e o princípio da proporcionalidade”, Claudio Chequer (2013) bem pondera sobre esse equilíbrio que deve existir na atuação policial: “Num cenário de real conflito, no intento de garantir a eficácia de todos os direitos fundamentais, torna-se preponderante a recorrência ao princípio da proporcionalidade. À guisa de reflexão, a polícia está autorizada a impor limites à forma de manifestação das liberdades de reunião e de expressão, entretanto, esta imposição de limites deve ser proporcional, de forma que não venha a esvaziar os direitos fundamentais em questão e, por conseguinte, caracterizar-se como uma atuação excessiva do aparato estatal. Por outro lado, a atuação da polícia também não pode resultar insuficiente à proteção dos outros direitos fundamentais envolvidos no conflito, tornando-se necessário, portanto, que os agentes estatais atuem para assegurar a liberdade de locomoção das demais pessoas alheias aos protestos e à integridade dos bens potencialmente colocados em risco de dano. O princípio da proporcionalidade, nesta seara, quer significar assim que o Estado não deve agir com excessos, tampouco de forma insuficiente na perseguição de seus objetivos. Exageros, para o mais ou para o menos, são capazes de configurar violações ao princípio analisado”.

[2] Nesse contexto sustenta Vladimir Passos de Freitas (2023) quanto aos riscos físicos e jurídicos aos quais os policiais são cotidianamente submetidos: “O risco à integridade física é o primeiro e varia conforme o local em que se exerce a função. [...] Porém os riscos não são apenas físicos. Podem ser também jurídicos. Afinal, a linha limítrofe entre o que pode e o que não pode não tem definição clara. Dependendo de quem venha a analisar o caso posteriormente, ela pode ser tida como uma das muitas espécies de abuso de autoridade previstas na Lei 13.869/2019. Daí para amargar uma ação penal por anos a fio é um passo”.

[3] Esse entendimento jurisprudencial, segundo alguns especialistas, dificultaria ações policiais preventivas (MUGNATTO, 2022).

[4] Sobre essa questão, vide trabalho de Tiago Gonçalves Escudero (2019).

[5] “A 6ª turma do STJ, ao analisar possibilidade de busca e apreensão em residência antes do amanhecer, invalidou, por maioria, diligência ocorrida em domicílio às 5h25 da manhã. Segundo o colegiado, o limite de horário trazido pela lei de abuso de autoridade para incursão em residência, das 21h às 5h, não afasta a ilegalidade da incursão em outros horários, prévios ao amanhecer” (MIGALHAS, 2023).

[6] Exemplo citado por Eliomar da Silva Pereira (2019, p. 93).

[7] Idem, p. 94.

[8] Ibidem

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